Conselheiro da Natura &Co, da TOTVS e da Pacaembu Construtora, onde também atua nos Comitês de Auditoria, e voluntário em quatro instituições sem fins lucrativos, Gilberto Mifano construiu sua carreira na área financeira e se especializou em governança, tendo lançado o Novo Mercado da bolsa de valores brasileira.
Administrador de Empresas graduado pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo, Gilberto Mifano começou a estudar governança há quase 30 anos, quando recebeu o convite para fazer uma palestra sobre o assunto no Chile. Mifano presidiu a Bovespa entre 1994 e 2007, participando da fusão com a BM&F, quando se tornou presidente do Conselho de Administração da nova formação da bolsa de valores brasileira.
Durante seu mandato, unificou nove bolsas brasileiras e lançou o Novo Mercado, segmento com os mais altos critérios de governança para empresas listadas. Em paralelo, atuou na construção do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), como conselheiro, vice-presidente e presidente do Conselho de Administração.
Conhecido pelo seu bom humor, atua como conselheiro independente de administração da Natura &Co, da Totvs e da Pacaembu Construtora – nas três empresas coordena ou participa dos Comitês de Auditoria. Antes, atuou em Conselhos e Comitês de empresas de setores diversos, entre as quais: a Cielo, a SEB Educacional, a Baterias Moura e o Banco Santander.
Desde 2009, é conselheiro consultivo e sócio da Pragma Gestão de Patrimônio. Entre suas atividades pro bono estão os Conselhos Fiscais do Instituto Arapyaú, da RAPS – Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, do CIEB – Centro de Inovação para a Educação Brasileira e do endowment Amigos da Poli, o fundo patrimonial da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Antes da bolsa, trabalhou como diretor de bancos nacionais e internacionais, como o Comind, o Banco Italiano para América do Sul, Sudameris, Banco Noroeste e Serasa. Começou a carreira na editora Abril, como estagiário da área financeira.
Nasceu há 73 anos, no Cairo, Egito, “por algum acidente geográfico”, como conta, e se mudou para a capital paulista com sua família de origem italiana, quando tinha 6 anos de idade. Seu principal lazer hoje em dia é acompanhar sua esposa e o crescimento de seus 5 netos.
1. Como foi a sua jornada até se tornar membro de Conselho de Administração?
Em 1994 virei CEO da Bovespa e membro do Conselho. Em 2009, quando eu “pendurei as chuteiras” na bolsa, depois de ter lançado o Novo Mercado, ter feito a unificação das nove bolsas no Brasil, e a fusão da Bovespa com a BM&F, eu estava como presidente de Conselho da então BM&FBovespa. E logo fui convidado para ser conselheiro em algumas empresas. Fui durante 13 anos conselheiro da Cielo, desde 2009 eu estou na Natura, desde 2011 estou na Totvs. Nesse meio tempo eu apoiei a criação do IBGC, participando de forma ativa, fui membro e presidente do Conselho do IBGC. Sempre estive envolvido com governança, a base do Novo Mercado é a governança, a resposta para a necessidade de desenvolver o mercado.
2. Quais temas você dedica a maior parte do seu tempo enquanto conselheiro?
Em todas as empresas onde estou ou estive como conselheiro normalmente “sobra pra mim” a coordenação do Comitê de Auditoria. Então a parte de medir riscos, controles internos, auditoria interna. Também finanças, investimentos, estratégia. E já atuei coordenando o Comitê de Pessoas. Faço um pouco de tudo, eu sou provavelmente o protótipo mais bem acabado de um especialista em generalidades.
3. Quais os assuntos de governança mais latentes nas organizações? Há algum tema em comum e recorrente entre elas?
Empresa sem risco não tem produto, não tem fornecedor. Os riscos financeiros, jurídicos e estratégicos estão em todas as empresas. As discussões do momento são sobre os riscos de ataques cibernéticos e vazamento de informações sem ser por invasão. Em ONGs talvez o espectro seja um pouco diferente, mas também é preciso olhar para os riscos. Um assunto presente em todas as empresas é o tratamento necessário sobre transações entre partes relacionadas. Não que esse seja o grande problema, mas o mundo de negócios está cada vez mais complexo, dificilmente você não terá um colega de Conselho que é de um outro Conselho, ou que foi executivo em alguma empresa que em algum momento pode representar um conflito [de interesse], às vezes não real, mas potencial. Tanto nas empresas quanto nas entidades do terceiro setor, é preciso olhar para as políticas de relações com partes interessadas. Eu presto muita atenção nisso e, nos Conselhos onde estou, procuro ajudar a criar políticas e formas de atuação. A minha filosofia é combinar tudo antecipadamente, enquanto não tem problema nenhum. Porque se no dia em que aparecer algum conflito que gere problema você quiser criar regras e arbitrar situações ficará muito mais difícil.
4. Quais políticas ou formas de atuação você costuma indicar neste caso?
Definir claramente quais são as áreas onde podem aparecer conflitos. Desde as mais óbvias – de contratação de serviços de empresas do próprio conselheiro, do controlador, de executivos, de familiares – até questões ligadas a discussões internas que ainda não são decisões. Nesse mundo cada vez mais complexo e entrelaçado, onde há oportunidades de M&A para debater, é preciso que todos estejam alertas para dizer: “olha, não vou participar dessa discussão porque lá na frente eu posso ter algum conflito”. Então, escrever isso nas políticas e divulgá-las para conhecimento público, para todos os acionistas e sócios terem ciência. Na prática do dia a dia, montar bases de dados, com nome, CPF, familiares, partes relacionadas e cruzar esses dados ao longo das contratações de fornecedores.
5. Inteligência Artificial (IA) está sendo tema recorrente este ano, com a adoção da tecnologia em diferentes segmentos. Como estão as discussões nos Comitês de Auditoria e nos Conselhos de Administração sobre a IA? E quais outras tecnologias ou tendências você destacaria?
Nesse tema de tecnologia falamos muito de digitalização e analytics, que é utilizar a base de dados que você tem para gerar insights estratégicos ou de prestação de serviço. A novidade da Inteligência Artificial é o uso da linguagem natural. O problema é que há riscos atrás dessa grande oportunidade. E é sempre assim, toda grande oportunidade traz junto algum risco. A IA [regenerativa] é alimentada não só pela quantidade gigantesca de informações disponíveis na internet, mas também a partir de cada pergunta que fazemos a ela. Então tem um perigo muito grande, que nos Comitês de Auditoria temos procurado entender e explicar para todo mundo, que é como funciona essa ferramenta espetacular, levantar as questões ligadas aos riscos inerentes, não só de receber uma resposta inadequada, imprecisa e às vezes até errada, e de fornecer dados que possam ser utilizados até por concorrentes. Quando você faz uma pergunta, precisa tomar cuidado porque você poderá estar passando para a ferramenta dados próprios e sigilosos que amanhã poderão ser utilizados em respostas, por exemplo, para concorrentes. Claro que você não pode virar as costas e banir essa tecnologia, mas eu acho que a consciência de como ela funciona provavelmente é a melhor solução, até o momento, para evitar problemas maiores que tirem o fantástico que a IA pode proporcionar.
6. A emissão global de green bonds atingiu recorde no primeiro semestre de 2023, a maioria realizada na Europa e Ásia. No Brasil, há um exemplo inédito de uma companhia que emitiu debêntures vinculadas a sua meta de aumentar pessoas negras em cargos de liderança. Por que a emissão de títulos de dívida vinculados a metas ESG é importante e qual o papel dos(as) conselheiros(as) nesse processo?
Primeiro, a questão da diversidade deveria ser uma preocupação de todos os Conselhos. Quanto mais diversa for a base humana da empresa, com certeza mais criativas e inseridas na sociedade serão as soluções, do que quando se tem um grupo muito homogêneo de pessoas que veem o mundo do mesmo jeito. Em Conselhos que eu estou, houve pedidos para que as empresas adotassem programas de diversidade e inclusão. Toda empresa tem externalidades negativas – como lidar com elas, quais são as metas, quais são os processos, o Conselho tem que emitir sinais claros para os gestores. Do mesmo jeito, investidores tem apetite por investir em empresas que tratem adequadamente tanto a parte ambiental quanto a parte social, porque com certeza essas empresas estão expostas a menos riscos do que as empresas que simplesmente ignoram a questão. Além disso, há fundos de pensão que dentro da sua política de investimento têm o compromisso de investir em empresas responsáveis. Os green bonds no começo atraíram alguns investidores que tem um mandato de olhar para essas questões de forma mais concreta, não só o discurso. E atraem inclusive outros tipos de investidores, oferecendo remunerações ligadas ao não cumprimento das metas. Há dois anos, como conselheiro, estive envolvido nas discussões da emissão de substainability bonds da Natura, vinculados a várias metas de desempenho ambiental para as quais, anualmente, se prestam contas. Se a empresa não atingir essas metas, o investidor vai receber uma remuneração maior do que a de face da emissão, funciona como um “castigo” para a empresa. A discussão desse bond na Natura foi inicialmente estimulada pelo Conselho, mas o primeiro passo poderia ter sido dos próprios executivos financeiros, porque a Natura tem uma tradição muito antiga de metas ligadas à sustentabilidade. Hoje existe um movimento semelhante no mundo inteiro, e o Brasil como um todo talvez esteja vindo um pouco atrás em já ter um padrão geral de empresas preocupadas em mostrar e se comprometer com metas de desempenho social e ambiental. Obviamente, a empresa só vai fazer a emissão de títulos, inclusive os verdes, se tiver uma necessidade financeira. Depois, a empresa precisa estar preparada para atuar de forma correta e isso é uma prova cabal de que o Conselho apoia esse tipo de iniciativa pois, em geral, quem autoriza emissões de dívida é ele, o Conselho.
7. A Organização Internacional das Comissões de Valores (Iosco) recentemente convocou seus 130 membros, incluindo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a aderir os novos padrões de divulgação financeira do International Sustanability Standards Boards, órgão da fundação IFRS, que por sua vez criou o padrão contábil mais adotado pelas empresas de capital aberto no mundo. Em outras palavras, a recomendação é unificar os relatórios financeiro e de sustentabilidade. Qual sua opinião sobre o potencial e a celeridade desses novos padrões se tornarem mandatórios?
A B3 acabou de soltar uma revisão do regulamento que trata dos requisitos para ter uma empresa listada, com seus papéis sendo negociados. Tais regras ainda tem o formato “Pratique ou Explique” para as questões ligadas à diversidade em Conselhos e diretoria. E desde a época em que eu estava na bolsa há um incentivo grande para que as companhias abertas adotem o Global Reporting Iniciative, de relatórios integrados. Por exemplo, a Natura e a TOTVS publicam seus relatórios integrados há bons anos. Hoje as empresas que compõem o ISE, Índice de Sustentabilidade Empresarial, precisam publicar o relatório do CDP, o Carbon Disclosure Project. Mas, tornar obrigatório que as empresas adotem novos padrões de relatório, no Brasil, é papel da CVM, como ela faz, por exemplo, com o informe de governança, que é baseado no código do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa). As empresas têm que informar anualmente se cumprem ou não as recomendações de boas práticas de governança, e explicar como adotam, ou se não adotam explicar por que não o fazem. Agora, obrigar a adoção de comportamentos depende de leis. O que, em geral, no Brasil demoram muito, veja o exemplo da reforma fiscal há quanto tempo falamos dela, então não estou muito otimista com grandes mudanças legislativas a curto prazo, mas espero que sim, que a CVM adote os novos padrões sugeridos pela Iosco.
8. Na sua experiência no mercado de capitais e em Conselhos de Administração, quais características mais sutis (soft skills) você percebe que são interessantes para conselheiros(as) desenvolverem para que continuem evoluindo nas suas entregas, e quais competências você precisou adquirir?
O primeiro grande desafio de um conselheiro é entender que o papel é bem diferente de ser executivo. Isso é muito fácil de falar e provavelmente muito difícil de fazer, e tem a ver com soft skills, com uma postura, um olhar muito menos operacional e mais estratégico, que leve em conta o lado humano dos colaboradores e principalmente da sociedade. É muito fácil falar que a empresa é centrada no cliente, mas é preciso praticar isso, conhecer o cliente, entender que a qualidade do seu produto e da sua empresa não são definidas por você, mas pela sociedade. Outra coisa muito importante é que um Conselho é uma equipe, um colegiado, então é preciso saber trabalhar em conjunto, o que exige boa comunicação, comportamento, leitura das pessoas, saber interagir com os pares, falar tudo que você tem para falar, saber fazer perguntas mais difíceis, estar sempre bem preparado para participar numa reunião. Ouvir é muito importante também. Já vi conselheiros muito bem equipados em conhecimentos técnicos, que no grupo têm dificuldade de levar suas opiniões adiante, provavelmente mais pela forma do que pelo conteúdo. Isso se evita principalmente sabendo ouvir e com a consciência da responsabilidade de dar o direcionamento para a empresa, que é muito maior do que prevalecer num embate de opiniões no pequeno grupo de conselheiros. Sempre procuro me desenvolver, e faço isso lendo muito, as coisas mais diversas possíveis, conversando com pessoas, descobrindo visões diferentes, me atualizando das novidades e questionando mesmo o que parecia “escrito em pedra”. Hoje eu dou muito mais valor paras questões humanas do que eu dava 30 anos atrás.
9. Você teria indicações culturais e de fontes de conteúdo relevantes para auxiliar seus pares a refletir acerca dos desafios no Conselho?
Eu sempre recomendo o IBGC quando as pessoas me procuram contando que estão querendo passar a atuar em Conselhos. Eu sugiro que primeiro entendam o que é governança, porque muita gente usa o termo de tudo quanto é jeito. E que se preparem, conversem com muita gente, façam cursos que acharem importantes. Por exemplo, você não pode sentar num Conselho sem entender como ler um balanço e sem saber quais são os principais riscos a que a empresa está exposta.