De tempos em tempos é natural que velhas discussões voltem à tona. O que não é natural é que, após apenas pouco mais de dois anos da aprovação de uma lei cuja discussão levou longos três anos, voltem argumentos e narrativas que foram amplamente refutados e derrotados tão recentemente. De qualquer forma, coloco a seguir os principais pontos que não deveriam trazer mais dúvidas nos dias de hoje.
O primeiro diz respeito ao argumento de que o setor privado não se interessa pelo atendimento a municípios de menor porte e à população de menor poder aquisitivo. O Novo Marco do Saneamento trouxe importantes elementos de regionalização (arranjo onde os municípios de maior porte, integrantes de regiões metropolitanas ou microrregiões, nos termos do artigo 25 da Constituição Federal, e em linha com a decisão recente do Supremo Tribunal Federal, são classificados como “serviços públicos de saneamento básico de interesse comum”). Isso significa que sua adesão ao arranjo é compulsória, desde que prevista em lei complementar estadual, garantindo a escala da operação. Já os municípios mais distantes dos grandes centros, classificados como de “interesse local”, têm garantida a possibilidade de adesão ao arranjo estadual – beneficiando-se dos ganhos de escala e, com isso, viabilizando grandes investimentos a preços menores do serviço. Hoje, essa não é mais apenas uma teoria: do Amapá ao Rio Grande do Sul, passando por Alagoas e Rio de Janeiro, houve licitações muito exitosas, que garantiram que nenhum cidadão das regiões licitadas fosse deixado para trás. Um sucesso inequívoco.
O segundo diz respeito à possibilidade de empresas que não conseguiram comprovar que possuem capacidade econômico-financeira de garantir a universalização de todos os seus municípios atendidos possam manter a operação dessas áreas. Aqui, é até surpreendente que essa discussão volte: a empresa, comprovadamente, não possui caixa, tampouco capacidade de endividamento, para investir o necessário para dar à população um serviço digno! Lembrando: estamos falamos de homens, mulheres e crianças obrigados a viver ao lado de seu próprio esgoto, o que traz inúmeras doenças que levam a óbito milhares de recém-nascidos todos os anos. O mesmo pode ser dito das operações irregulares (aquelas que nem ao menos têm um contrato vigente – ou seja, sem metas, sem prazos, sem condições mínimas). Juntos, esses problemas atingem quase mil municípios brasileiros. Qual é o grande óbice à licitação imediata desses contratos para atrair investidores capitalizados e eficientes, que resolveriam o problema em um curto espaço de tempo?
Por fim, o caso das Parcerias Público-Privadas administrativas. No novo marco, há uma clara limitação a 25% para que as empresas estaduais “terceirizem” seus serviços a um agente privado. Por que há esse limite? Simples: levando ao extremo, se uma empresa estatal delegar 100% de sua operação, ela fica apenas como uma intermediária, cobrando um “prêmio” sem estar, de fato, agregando valor (o que é vedado pelo § 3º do Art. 11-A da Lei 11.445/2007). É um contrato dentro de outro contrato. Afinal, isso, por óbvio, aumenta a tarifa (econômica) do cidadão. Importante lembrar que as agências reguladoras já existem para monitorar os contratos e garantir a qualidade dos serviços – ou seja, o exercício dessa função não deveria ser a justificativa para a não-licitação direta, sem “atravessadores”. Além disso, é sabido que, quando a empresa é pública, ocorre pressão política de tempos em tempos pelo congelamento da tarifa. Nessa situação, se embaixo da empresa há uma cesta de contratos atualizados pela inflação, corre-se o sério risco de, no futuro próximo, haver uma situação de insolvência (de natureza financeira) que se refletirá no apagão dos investimentos e na piora de qualidade dos serviços.
É natural que o Novo Marco do Saneamento não seja uma unanimidade. Nenhuma política pública é: afinal, marcos legais são fruto de muito debate, com pontos de vista por vezes antagônicos. Porém, uma vez vencido o processo e publicada a lei, é importante garantir sua manutenção e aplicação, sob pena de criação de um caos institucional que não interessa a ninguém: nem ao poder público, que perde nos campos social, econômico e ambiental; nem às empresas estatais mais eficientes, que venceram a etapa de comprovação de capacidade econômica e, agora, precisam emitir dívida e estruturar suas operações; nem ao setor privado, que precisa de previsibilidade para avançar de maneira eficiente; e, principalmente, nem à população, que permanecerá desprovida de um serviço tão básico e tão fundamental, por causa do retorno a debates que já deveriam estar superados há muito tempo.
*Este artigo foi publicado inicialmente na Agência iNFRA.